Bernarda, Nícolas e Roberta
(por João Moraes)
Lembro quando li pela primeira vez Federico Garcia Lorca. Tinha 17 anos e cursava o terceiro ano e pré-vestibular juntos lá no Rio de Janeiro, no cursinho GPI do Méier. Eu morava em Bonsucesso e todo dia me apinhava junto a mais umas cem pessoas num ônibus azul cujo número me foge a memória. Em frente à escola havia, indefectível, o bar do João. Corria o ano de 81 e com a anistia os exilados estavam voltando, entre eles o ídolo do João, Leonel Brizola.
Ele gostava tanto do gaúcho que tinha um pôster antigo dele escondido na cozinha do bar. Quando vi o quadro de sua devoção perguntei como se dera o inusitado apreço. Ele me contou que seu pai era espanhol e que havia lutado na guerra civil espanhola. João herdou do pai as convicções socialistas e acabou vendo em Brizola uma liderança com ares meio hispânicos.
Ali conheci o já poeta e futuro matemático, Jorge Petrúcio. Nós estudávamos e bebíamos juntos pelos subúrbios do Rio. Ele me apresentou Lorca enquanto a gente, pela primeira vez, compunha uma canção juntos; depois dessa primeira composição vieram muito mais parcerias. Petrúcio me apresentou o poema “As Seis Cordas”, que até hoje me embala a admiração irredutível e enche de soluços o velho peito.
“A guitarra faz soluçar os sonhos./ O soluço das almas perdidas/foge por sua boca redonda. E, assim como a tarântula,/tece uma grande estrela/para caçar suspiros que bóiam/ no seu negro abismo de madeira.”
Semana passada tive novo encontro marcado com Federico, mas nem imaginava que o encontro me encheria novamente os olhos de admiração e que me seria renovado o gosto pelo teatro. Fui assistir “Bernarda por Detrás das Paredes” lá no Coletivo Folgazões, Repertório e Cousa; num casarão vermelho que fica na ladeira de acesso para a Catedral Metropolitana. Lá as companhias de teatro Folgazões e Repertório se juntaram à editora Cousa e montaram um belo espaço que pode abrigar produções de bolso com elegância e bom gosto.
A montagem do espetáculo é da Companhia Repertório, que produziu uma bem pensada colagem de “A Casa de Bernarda Alba” de Lorca e “Arte Poética” de Aristóteles. São só 30 lugares por apresentação; 30 bocas abertas de admiração pelo talento exuberante dos atores Nícolas Lopes e Roberta Portela. Os dois incendeiam nove personagens num rodízio de almas sem trocas de figurinos.
Embalados por uma trilha executada ao vivo – composta por Dori Sant?Ana e arranjada por Fabio do Carmo -, Nícolas e Roberta despejam um turbilhão de linguagem teatral aos 30 incautos espectadores. Quase que dá para morrer de tanto que não se respira.
Há muito que não fico tão entusiasmado e feliz por ter saído de casa rumo a arte. Foi o último fim de semana da temporadinha que encenaram lá no Coletivo. Mas me garantiram que em bem pouco tempo retornam ao palco para nova temporada. Recomendo esse prazer a todos; e adiciono que façam como fiz: depois de ver Nícolas e Roberta, desçam até a Rua Sete e arrisquem umas cervejas. Talvez até sintam passar por ali um cortejo andaluz soprado por Lorca e encabeçado por Bernarda e suas cinco tristes filhas.
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